Gabriely Santos
O companheiro de todas as horas
19/07/2021 17:22
Foto: DIVULGAÇÃO

Ele é o primeiro que eu vejo todas as manhãs. Não, não é homem no travesseiro, nem sol batendo na janela. É ele mesmo, o meu relacionamento abusivo preferido e imprescindível: o celular. No começo, parecia um relacionamento informal. Eu ligava todos os dias, mas desligava sempre que precisava. Agora ligo de manhã e só desligo segundos antes de dormir.

No começo, era só a câmera, uma foto de gato aqui, o pôr do sol ali, uma selfie lá. Aí as redes sociais, né. Parece que quem não alimenta alguma delas, já morreu há tempo e, como millenial, não sei se isso já é cringe, mas preciso que os outros lembrem que eu estou viva. Mesmo que seja só pra não responder as mensagens deles porque, geralmente, internet me dá impaciência e ansiedade e é mais fácil deixar pra um dia ou nunca esbarrar com as pessoas e falar pessoalmente com elas. Durante um tempo me acreditei escritora, mas mesmo assim, não confio completamente nas palavras – elas são passíveis de interpretação e ninguém é obrigado a entender a gente. Esses dias comentei sobre a magreza de uma cantora famosa e me acusaram de ‘body shaming’ e eu fazendo um elogio. Por isso, geralmente, não falo nada. Só observo. Então, resumindo, são várias horas de vida perdidas em redes sociais. No ângulo perfeito da foto que poucos vão ver e nenhuns vão lembrar. Gasta-se vida numa velocidade perigosa, em bytes e likes.

Só que piora, porque agora não é só o entretenimento que fica na palma da mão, mas, junto com o mundo inteiro que está ‘ao nosso alcance’ – ficam, também, nossos contatos de trabalho, os e-mails, docs, boletos, os contatos de todo mundo, do chefe ao crush de dois anos atrás, que, inclusive, deveríamos ter apagado, mas o que a gente não acumula hoje em dia?

Aí acaba que sempre que a gente consegue desgrudar os olhos, o tédio e o coração da tela, tirar os dedos do touchscreen e parar de pensar em caracteres e o que significam e é só ele vibrar que lá estamos lá de novo, nem dá tempo de esquecer ele na outra sala, ele vai sempre junto, no bolso, na bolsa, no pensamento, leva uns tombos, as vezes trava, se desliga, trinca a película, mas tá sempre ali e se não está, o desespero que se experimenta é quase de quem perde um amigo, um irmão, um pedaço da perna, ‘minha vida (es)tava lá dentro’ e mesmo que o Google salve mesmo várias coisas, nada substitui o aparelho que nos acompanha dia e noite, pelas aventuras da vida ou pelo itinerário eterno quarto/banheiro/cozinha.

Se é verdade que através dele o governo nos espiona e os nossos dados são negociados pelas grandes empresas de marketing e nossa vida do nível mais básico ao pensamento mais complexo todos são regulados e orientados pelos algoritmos, não posso confirmas, mas certamente, nunca qualquer um, soube tanto das nossas vidas, a qualquer momento, em qualquer lugar, pelo simples fato de que, espontaneamente, compartilhamos. E isso é um pouco assustador.

 

Autor: Gabriely Santos

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